Viver no mesmo tempo em que Fernanda Montenegro é presenciar um estado permanente de honra e glória. A atriz, que desde o início de seu romance com as artes, ainda na década 1940, fez uma série de sacrifícios para realizar o que mais amava, segue trabalhando em sua missão transformadora. O objetivo? Tornar o mundo um lugar mais sensível – tanto que, ainda que não seja intencional, tem feito de sua existência uma narrativa com prólogo, ato e epílogo – palavras que dão título ao seu livro de memórias.
Em 2019, completando 90 anos de idade, Fernanda se mostrou mais do que nunca imbatível: abrilhantou produções cinematográficas, cumpriu uma agenda intensa de compromissos no teatro e na TV e ainda arranjou fôlego para defender, em sua potência máxima, a cultura no Brasil. Mostrou que pode ser o que quiser, inclusive uma bruxa com super-poderes. Por essas e outras listamos as coisas mais maravilhosas feitas por essa lenda das artes.
Em fevereiro deste ano, dando início aos trabalhos de filmagem da novela “A Dona do Pedaço”, Fernanda Montenegro se deslocou até Jaguari, no interior do Rio Grande do Sul, para gravar as primeiras cenas da destemida Dulce Ramirez, matriarca de uma família de pistoleiros que de boazinha só tinha a aparência.
Lá ela protagonizou cenas antológicas como, por exemplo, quando decidiu dar um tiro no noivo de sua neta durante a cerimônia de casamento. Não satisfeita, ela arquitetou um homicídio qualificado, eliminando quase todos os seus oponentes. Arretada, a mulher! Foram apenas quatro capítulos, mas o suficiente pra mostrar que com Fernanda – ou Dulce – não se brinca.
Preocupada com o que deixaria de concreto para os netos, todos jovens, Fernanda iniciou há cerca de três anos uma série de entrevistas com a jornalista Marta Góes. Foram 18 encontros transcritos e editados para dar origem ao que pode ser definido como “uma aula de vida e de atuação”. Em 2019 chegou às lojas, pela Companhia das Letras, o livro de memórias “Prólogo, Ato, Epílogo”.
Partindo desde a origem de seus antepassados e seguindo rumo ao presente, o livro resgata episódios importantes de sua trajetória como seus inícios no curso de secretariado da Berlitz, os desafios enfrentados ao lado do marido Fernando para manter sua bela e árdua rotina no teatro, bem como sua glória, tardia, nas telas do cinema.
Pelas palavras de Fernanda, temos acesso a uma narrativa profunda e sensível que empreende de si mesma. O leitor que decide se sentar por algumas horas com este livro em mãos precisa saber: levantará completamente apaixonado pela vida, acreditando que o mundo tem jeito. Nas últimas linhas ela diz com muita sabedoria:
“Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto”
Fazendo jus a essa trajetória brilhante, a atriz recebeu o convite de lançar seu livro no histórico Theatro Municipal de São Paulo. Com uma plateia lotada, ela leu trechos da obra e conversou com a amiga e jornalista Martha Goes. Caso você tenha perdido ou queira ouvir mais uma vez, o áudio da tarde de leitura está disponível, na íntegra, em formato de podcast.
No dia em que completou, por fim, seus amplamente festejados 90 anos, 13 de outubro, Fernanda Montenegro tomou uma decisão que, por mais incrível que pareça, não nos surpreendeu: quis estar com o público, lendo. Após ter lançado sua autobiografia nos theatros municipais do Rio e de São Paulo, a atriz retornou à capital paulista para homenagear no dia de seus anos um dos mais importantes dramaturgos brasileiros: Nelson Rodrigues.
Fazendo uma leitura dramática da obra “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, de Sônia Rodrigues, filha do cronista e escritor, o ícone promoveu um momento de êxtase absoluto ao percorrer teorias, ficção e ainda assim suscitar, em meio a tudo isso, traços da própria personalidade do autor. Os ingressos tiveram o valor simbólico de R$ 5 e as filas, bem… foram quilométricas. Teve gente que esperou mais de 10h pra conseguir entrar.
O que não faltou em 2019 para Fernanda Montenegro foram entrevistas. Sempre muito lúcidas, as conversas rolaram tanto em jornais impressos, quanto em programas de TV como Metrópoles, Fantástico, Globo Repórter e Conversa com Bial. Neste último, a atriz falou sobre o processo criativo de seu livro e celebrou seus 90 anos dizendo que herdou “a sorte de não estar gagá”. Não faltaram menções a figuras importantes a sua formação, como Nelson Rodrigues, o marido Fernando Torres e os próprios pais.
“[Meus pais] tinham vinte e poucos anos de Brasil quando nasci, mas ninguém era mais brasileiro que minha mãe e meu pai. A sobrevivência ficou cravada em minha formação”.
Sobre como lidava com a censura e se a parceria artística em algum momento atrapalhou sua relação com o amado?
““Mesmo se estuporando numa censura horrenda, a gente se expressava. (…) Tudo é uma arte. A vida é um projeto em comum. Pode ser num palco mas pode ser em outras áreas do ser humano. Se você não tem essa parceria além do dito amor, o amor não vai existir.”
O programa, completo, pode ser visto na GloboPlay, clicando aqui.
Fernanda Montenegro e cinema é sempre uma junção de respeito. Só em 2019 a musa estrelou três produções. A primeira delas que falaremos é “Piedade”, onde a musa interpreta Dona Carminha, mais uma matriarca, gerente do Bar Paraíso. O estabelecimento à beira-mar foi construído por seu falecido marido na Praia Saudade, em Piedade, e no local vivem ela, o filho Omar e o neto Ramsés.
Tudo se transforma com a chegada do executivo Aurélio, personagem de Matheus Nachtergaele, que traz um baque para a família a partir de revelações que dizem respeito a Sandro, interpretado por Cauã Reymond, e Marlon, Gabriel Leone.
Não menos importante, há também “O Juízo”, longa que marca mais uma colaboração da atriz com o genro, o diretor Andrucha Waddington (a primeira aconteceu em “Casa de Areia”, de 2005), e seu primeiro trabalho ao lado do neto, Joaquim Torres Waddington. Na trama, o personagem de Felipe Camargo se muda para uma casa no meio do nada herdada por seu avô. O local, entretanto, reserva um passado cheio de traições e uma vingança doentia que ameaça a segurança de sua família. No elenco, Criolo, Carol Castro e Lima Duarte.
Mas nada foi tão imbatível quanto “A Vida Invisível”, vencedor da mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes, em 2019. Embora sua participação aqui seja breve, já que interpreta a protagonista apenas nos minutos finais, não pudemos deixar de nos emocionar. É Fernanda, na pele de Eurídice, quem faz a leitura de antigas cartas enviadas pela doce Guida, sua irmã há muito desaparecida. Ambientada no Rio de Janeiro dos anos 1950, a história remonta a crueldade de uma separação feita unicamente para respeitar padrões sociais e o conservadorismo desenfreado – questões que, ainda hoje, infelizmente, ainda se mostram vivas.
Com “A Vida Invisível” pudemos vislumbrar uma possível inserção de Fernanda na lista de indicados ao Oscar. Você sabe, ninguém superou ainda hoje, 20 anos depois, o prêmio de Melhor Atriz da cerimônia de 1999 ter ido para Gweneth Paltrow (JUSTIÇA PARA DORA!!!). A divulgação foi pesada, o diretor Karïm Ainouz percorreu o mundo em busca de apoio, mas… acabamos de fora. Não foi desta vez que a vimos novamente na maior festa do cinema. Quem sabe numa próxima?
Além de receber uma enxurrada de carinho por parte de fãs e admiradores, Fernanda também foi agraciada com gestos concretos. Em janeiro deste ano Fernanda foi homenageada com o Prêmio Cesgranrio, maior premiação do teatro brasileiro. Em seu discurso de agradecimento, a musa parabenizou os artistas mais jovens e se disse demasiadamente emocionada – o que, em suas palavras, não esperava que fosse acontecer.
“O momento dessa geração mais jovem é de resistência, de fazer um ofício com o qual não pode se manter. Tem que viver que nem mendigo, pedindo aqui e ali, submetendo-se a comissões que são direcionadas, com um caminho ideológico, de atendimento político. Eu respeito esses jovens atores, todos que estão aqui batalhando, diante da destruição de uma arte eterna”.
O disco “AmarElo” pode, com tranquilidade, ser considerado um respiro em meio às múltiplas turbulências de 2019. Entretanto, nada em sua essência parece ser tão sublime quanto a declamação do poema “Ismália”, de feita na faixa de mesmo nome, por Fernanda Montenegro. Ao Papelpop, bem humorado, Emicida relembrou a experiência de ter a atriz em estúdio ao seu lado.
” Fiz o convite e fiquei emocionado no estúdio. Ficava olhando ela gravar e pensava “Caralho, Nossa Senhora Aparecida de ‘O Alto da Compadecida’ tá na minha frente’ (risos). Se isso não é vencer… Eu sou um cara sensível, meto a postura, ajo como se fosse tudo natural, mas a real é que fiquei bambo. É a Fernanda, sabe?”
Ouça:
No embalo do frenesi em torno da informação de que o terceiro filme da franquia “Animais Fantásticos” se passaria, em partes, no Brasil, foi criada uma petição para que Fernanda Montenegro interpretasse a presidente do Ministério da Magia. A atriz, além de ser a única brasileira indicada ao Oscar, também tem experiência em produções gringas. Em 2008, por exemplo, ela fez parte da adaptação (em inglês) de “O Amor nos Tempos do Cólera”, livro de Gabriel García Márquez.
O manifesto para que fizesse parte do novo filme da saga tinha como meta 100 mil assinaturas, quase todas contempladas quando… foi rechaçado. Por questões de agenda, Fernanda disse em uma postagem de seu Instagram que não estaria apta a aceitar qualquer convite. Uma pena, porque nós teríamos adorado!
A internet ficou em polvorosa quando em meados de setembro a revista Quatro Cinco Um, especializada em literatura, anunciou que a capa do mês de outubro seria um ensaio com Fernanda Montenegro. Não era só isso: a atriz aparecia em três takes diferentes vestida de bruxa, enrolada em cordas e prestes a ser queimada na fogueira. A edição, que celebrava a literatura infantil e suas memórias, se esgotou rapidamente. A criação da capa foi dirigida pelo designer Luciano Schmitz, artista premiado que já criou capas incríveis para as revistas Serafina e Elle, e a fotografia é de Mariana Maltoni.
Sem dizer uma só palavra, se é que era preciso, Fernanda lançou luz mais uma vez sobre a importância de se respeitar a arte – e acima de tudo, vivenciá-la.
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