Fim de ano é sempre um rito de passagem. É hora de olhar para trás e avaliar tudo o que vivemos, sentimos e… ouvimos! Ao longo dos últimos meses, que agora deixamos pra trás, tivemos acesso a trabalhos geniais como o “AmarElo” de Emicida. Fomos surpreendidos pela doçura puerperal de Céu e seu “APKÁ!”. Aceitamos vários convites pra dançar, seja ao som do brega de Luísa e os Alquimistas, seja cativados pelo funk de Ludmilla.
Apesar de todos os ataques à cultura, 2019 foi, sim, um ano bonito pra música nacional – e a gente bem gostaria de render elogios também a Pabllo Vittar e Gloria Groove. As duas, cá entre nós, fizeram alguns dos mais incríveis lançamentos deste ciclo. Porém, nossa lista de melhores álbuns do ano contempla apenas projetos de longo formato. Para amar, sentir saudade ou mesmo se jogar mais uma vez ao som de brasilidades que vão do rock ao carimbó, permita-se reviver as emoções únicas deste ano. Deixe nosso ranking mexer com a sua memória afetiva. Não vai ser tão difícil assim, vai!
Confessional é a palavra que melhor resume “Par de Olhos”, álbum de estreia da paulistana YMA. Figurando algumas das mais importantes listas de melhores do ano, o projeto busca nos anos 1980 uma sonoridade que faz seu ouvinte dançar embalado por sentimentos, dores e romances vorazes – aspectos e temáticas que poderiam muito bem ter saído de um diário? Honesta, a artista canta como se abraçasse quem ouve, tornando suas composições em poemas de fácil identificação. Atmosférico até o último segundo, o disco tira do chão os pés de quem ouve, elevando-o a uma experiência libertária, ao mesmo tempo em que absolutamente ébria. Pra quem gosta de Kate Bush, eis aqui uma discípula.
O som de Dona Onete ganhou mesmo o gosto do público! Seguindo uma agenda agitada de shows que cumpre Brasil adentro, sempre animadíssimos, a rainha do carimbó expandiu seu repertório com “Rebujo”, disco que torna mais intenso seu batuque de tambores do norte e flerta abertamente com o samba carioca. Aos 80 anos, a artista se mostra uma anciã inventiva, profundamente conhecedora do que canta, de suas raízes, bem como a grande responsável por levar sua cultura a qualquer lugar que se diga: “Cante”. Pra rodar a saia ao pôr-do-sol, ao longo da noite, até o dia raiar.
Djonga voltou poderosíssimo em 2019 com o lançamento de “Ladrão”, obra em que deixa seu discurso político ainda mais explícito ao tecer uma crítica social sobre o racismo. Relembrando tristes episódios de sua infância, o rapper emprende uma busca por conquistas pessoais e convida seu ouvinte a pensar o Brasil de hoje, banal e carregado de problemáticas originadas pela complexidade das relações.
Enquanto colhiam os frutos do bem sucedido “Remonta”, álbum de estreia lançado em 2016, Liniker e os Caramelows foram convidados para fazer uma turnê que passou por mais de vinte países. Naturalmente, a estrada se tornou um ambiente inspirador e confortável o bastante para a criação. O resultado desses meses de imersão em estúdio, seja em Araraquara, interior paulista, seja em Berlim, capital alemã, foi o disco “Goela Abaixo”, um álbum solar, iluminado, e que resulta de muito amor.
Há quem diga que não existe amor em SP, mas o fato é que ele está presente em todos os milhares de cantos da metrópole. Entre prédios, ruas, casas e pontos turísticos sempre há algo acontecendo. O que falta, talvez, seja correspondência? Thiago Pethit, munido de suas experiências pessoais, usa a maior cidade da América Latina para narrar uma epopeia de amores mal resolvidos, noites vazias e paixões intensas, carnais. Entre o amor e a maldição, embala seus poemas com elementos sonoros dos anos 1970, música clássica, beats eletrônicos e algumas doses de hip hop. Pelos olhos do “Orfeu da Consolação”, o muso entrega um dos discos mais conceituais e poéticos do ano.
Assim como Patti Smith conclama em “People have the power” que as massas tem o poder de transformar sua realidade, o BaianaSystem estreita sua relação com o público ao lançar “O Futuro Não Demora”, disco marcado pelo já tradicional discurso crítico da banda, mas aliado a uma necessidade de renovação. São muitos ritmos, desconstruções sonoras e batidas tribais que fazem deste projeto a base para o que tem sido considerado atualmente o melhor show nacional na estrada.
O novo disco do rapper Black Alien é provocativo na medida certa. Traz reflexões sobre o vício em drogas, dialoga com personalidades mortas da música pra tratar do peso da fama e ainda constrói um fio narrativo cheio de honestidade – embora se apoie em muitas metáforas. O segredo dessas escolhas está no desejo de fazer o ouvinte pensar, experienciando cada segundo de suas canções, sempre levando suas conclusões adiante. Poeta, o rapper aproveita a oportunidade para versar sobre a política brasileira e enaltecer, à sua maneira, sobreviventes da vida real ao som de toques do bom e velho jazz.
Alice Caymmi saltou do pop grudento de seu álbum autointitulado, lançado em 2018, para uma proposta minimalista, intimista e muito elegante neste ano. Com “Electra” a artista assume uma essência dramática ao abraçar uma sonoridade marcada apenas pelos toques precisos de Itamar Assiere no piano. No repertório, regravações de Tim Maia, Letuce e Tom Zé. O mais incrível disso tudo? Esteticamente perfeito, o disco foi gravado em apenas dois dias.
Uma das grandes rappers de sua geração, Drik Barbosa buscou em seu disco de estreia, autointitulado, refletir o que há de mais honesto em sua natureza ao construir descrições poéticas da dura rotina dos pais durante sua infância. Também estão lá os esforços que fez até aqui para se manter como artista e sua luta como mulher negra em um cenário marcado por embates contra o conservadorismo e o preconceito. “Drik Barbosa” é o retrato de uma mulher com a língua afiada e dona de si, mostrando que o mundo pode até tentar pará-la, mas concretizar essa missão… é outra história.
It’s only rock n’ roll but we like it! Pitty celebra em “Matriz” seus quinze fucking anos de carreira – uma das mais sólidas e bem sucedidas, diga-se de passagem, da música brasileira. Sendo o maior nome feminino do gênero em atividade, a artista baiana cria um trabalho cheio de afeto, boas letras e muita energia. Brinca com o paradoxo de resgatar origens e ao mesmo tempo se reinventar. É tudo bem coerente: ela olha pra trás, acena, mas jamais se deixa repetir a mesma fórmula. É forma avassaladora que Pitty mostra novas possibilidades e ainda deixa um lembrete: o rock pode e é sempre muito caloroso.
Karina Buhr é uma artista completa. Canta, compõe, toca instrumentos… e faz tudo isso de maneira ainda mais genial em “Desmanche”, seu mais recente disco. Depois de bradar um poderoso discurso feminista em “Selvática” (2015), a artista aposta em guitarras, tambores e jogos de palavra engenhosos pra criar uma atmosfera mais branda, que transborda poesia. Dialogando com desilusões, seres ancestrais, guerreiros zumbis e a própria contemporaneidade, ela analisa o Brasil de hoje e constata: falta amor e o tempo… esse sim, anda mais matador que nunca. Nossas favoritas? “Amora”, “A Casa Caiu” e “Filme de Terror”.
Vigoroso, selvagem e cheio de energia, o debut da banda Luísa e os Alquimistas é brilhante como o Nordeste, que oferece a maior parte de suas influências sonoras. Embalado pelo bregafunk e o reggaeton o disco promove uma mistura rica em experimentalismo que vai desde citações em francês aos já tradicionais beats eletrônicos do pop. Fala de amor de forma descomplicada, suscita os dilemas do horóscopo e ainda por cima manda aquele recado sobre empoderamento. Tudo isso pra quê? Pra dar gás a um desejo pungente de nos levar para a pista. É chiclete, é doce e muito, muito inteligente. Já viu essa estética?
Em 2019 Adriana Calcanhotto, poetisa mor deste país, encerrou uma trilogia dos mares iniciada no fim dos anos 1990. A “Maritmo” (1998) e “Maré” (2008), soma-se agora “Margem”, disco concebido entre Brasil e Portugal – onde na Universidade de Coimbra. Além de cantar sobre amor e evocar figuras fabulosas como o chamado “príncipe das marés”, que dá título aliás a uma das canções, Adrix também chama a atenção para a degradação dos oceanos e o sofrimento dos refugiados em travessias desumanas.
O grande destaque? “Meu Bonde”, um funk 150 bpm que bota todo mundo pra dançar (vimos ao vivo e saímos de lá morrendo de vontade de cair no baile)!
Sempre precisa, Elza Soares resgatou um triste episódio de seu passado para dar nome a seu mais recente álbum de estúdio. Questionando os fãs sobre o que estes tem fome, a artista relembrou a ocasião em que foi humilhada em um show de talentos no início da carreira por sua aparência humilde. Diante de um Brasil polarizado, que convulsiona e parece ser incapaz de enxergar as mazelas da desigualdade, Elza canta sobre amor sob novas perspectivas, trazendo temas sérios como tradições, violência e racismo. Deixa claro do início ao fim que algo precisa ser feito e coloca sua música à disposição da mudança. A capa do projeto, igualmente grandiosa, é assinada pela também musa Laerte Coutinho.
Que surpresa deliciosa foi o disco de estreia de Tássia Reis! Enfrentar o racismo e lutar por igualdade de gênero são duas coisas demasiadamente necessárias e Tássia Reis sabe muito bem disso. Entendendo que a necessidade de transformação nesse sentido, a rapper paulistana colocou sua música mais uma vez à disposição do público que busca ser orientado. “Próspera” não poderia ter tido um título mais preciso e convidativo. É como se a autora estivesse dando as mãos ao seu ouvinte e dizendo: “É possível. Vamos juntos?”. No disco ela canta sobre questões financeiras, amorosas, espirituais e sentimentais. “Próspera” é, acima de tudo, sobre conquistar.
Fafá de Belém sabe como ninguém extrair o que há de mais bonito na dramaticidade, transformando-a em sinônimo de arte. Em “Humana”, um de seus melhores trabalhos recentes, ela vai fundo na poesia e constrói um registro tocante e cheio de arranjos delicados – na mesma proporção em que poderosos. O medo de produzir um álbum datado aqui não existe, até porque neste projeto a diva usa e abusa de composições concretizadas há mais de quatro décadas. Há letras de Jards Macalé e Wady Salomão, Ava Rocha, Letrux e Adriana Calcanhotto. Cravando mais uma vez seu nome no livro dos grandes intérpretes da MPB, Fafá prova que conceito, aclamação e coesão são bons e justos adjetivos para seu trabalho.
Abram os caminhos, uma nova musa da MPB está entre nós! O debut de MC Tha, “Rito de Passá”, foi seu dúvida alguma um dos discos mais reproduzidos ao longo deste 2019. Guiada pelas próprias experiências pessoais e por uma sensibilidade ímpar, Thaís nos conduz pela mão a uma viagem ao bairro Cidade Tiradentes, espaço onde nasceu e tira grande parte de suas referências. Nessa experiência marcada por sons milimetricamente sobrepostos e uma entrega completa, o disco se mostra uma confirmação de versatilidade, provocação e religiosidade (esta última, inclusive, expressa na capa). Um misto de funk, pop, axé e rap.
Ô, favela chegou! Respeita, caralho! Ludmilla fez de 2019 o ano mais brilhante de sua carreira, iniciada junto a esta década. Em “Hello Mundo”, seu primeiro disco ao vivo (e que depois acabou ganhando uma versão em estúdio), ela tem apenas duas premissas: mostrar a grande diva que sempre foi e colocar todo mundo pra dançar. Ao som de grandes sucessos, Lud também apresenta ao público faixas inéditas como “A Boba Fui Eu”, com Jão, “Invocada”, com Leo Santana, e “Favela Chegou”, com Anitta. É pop chiclete, delicioso pra animar qualquer festa e levantar qualquer baixo astral!
Céu pegou todo mundo de surpresa quando em setembro, pontualmente à 00h, publicou um textão em sua conta no Instagram anunciando o lançamento de “APKÁ!”, seu quinto álbum de estúdio. O título foi dado por seu próprio filho caçula, Antonino, e traz uma síntese bastante precisa da obra, definida como “um grito de amor” (A palavra título foi um brado dado pelo pequeno em uma situação cotidiana, durante o período de criação das canções).
Concebido durante seu puerpério, fase pós-parto em que a mulher experimenta modificações físicas e psíquicas, o trabalho traz Céu explorando ainda mais a fundo a sonoridade eletrônica, agora sobreposta por temas como o amor, a tecnologia e a resiliência. O disco ainda traz um bônus: uma canção composta por ninguém menos que Caetano Veloso. “Pardo”, se você nos permite dizer, é uma delícia porque traz as essências de ambos os envolvidos, intérprete e compositor.
As andanças de Emicida pelo mundo, mais precisamente pela África, fizeram com que ele chegasse à conclusão de que somos mais parecidos do que nunca com aqueles que vivem do outro lado do mar. Estendendo melhor o novelo da vida e traçando um fio entre o Brasil e as nações irmãs que temos, surgiu “AmarElo”, trabalho que se constrói como uma coletânea de cartas.
O rapper narra em cada uma das 11 faixas histórias do cotidiano centradas na leveza, no silêncio, na poesia e na necessidade de se oferecer uma mão. Aqui, Emicida segue o caminho contrário e propõe um diálogo com os marginalizados, com os que sentem o coração apertado… com quem deseja e precisa de um abraço e uma recepção calorosa. “AmarElo” é lindo e necessário – por isso figura no topo do nosso pódio.
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