Batemos um papo com Emicida sobre poesia, música sacra e Brasil contemporâneo

Assim que atende ao telefone Emicida mostra que é um cara descomplicado. Ele divaga sobre política, poesia e não raro lança um desafio a este repórter que vos escreve: gargalhar. No palco sua postura é diferente: mesmo que a função seja entreter (o que ele cumpre com excelência) o rapper não brinca. Por cerca de 1h30 franze o cenho e se transforma em um gigante, respeitado como os que estão nos livros sagrados. Está neles também uma frase que exemplifica bem o que digo: “há tempo para todas as coisas”. Na hora cantar retratos desse Brasil que resiste, de uma nação que ri enquanto suas chagas ardem, é preciso levar mesmo um papo sério.

Mas há equilíbrio. Quando está do lado de cá e se senta para trocar uma ideia, transborda leveza. Conta casos, relembra experiências, diz o que se sente e por alguns minutos faz até com que você acredite que o mundo tem jeito. Na última semana tive a honra de me sentar para ouvi-lo por 30 minutos. Discutimos sobre os mais variados temas. Música, política, comportamento, espiritualidade, símbolos… teríamos ido além se a assessora não tivesse nos dito que a hora corria. É ele mesmo, o tempo, quem nos dá a chave para as respostas do novo álbum de estúdio do artista, “AmarElo”.

Elogiada pela crítica, sua nova leva de canções chegou no último dia do mês de outubro e traz consigo composições que vão na contramão da agitação, lembrando cartas de amor. São endereçadas a mim, a você, a qualquer um de nós. É um trabalho feito pela comunhão e que, além de trazer ritmos e experimentações genuinamente brasileiros, entre eles a música gospel, empregada a partir de elementos do candomblé, também apela a uma ótica contemplativa das coisas. Tudo aqui se constrói de uma forma menos acelerada, para ser sentido.

Por isso mesmo a necessidade de tributos a quem entende bem esse processo. Zeca Pagodinho, Dona Onete, Chico Buarque, Wilson das Neves… são eles, figuras populares do Brasil, os protagonistas dessa narrativa. Quando pergunto sobre a curadoria dessas referências e participações, Leandro (este é seu nome de batismo) cita Ruth de Souza e Fernanda Montenegro: “Uma pena que a Dona Ruth se foi. Ambas são pilares da nossa tradição cultural (…). Ficava olhando e pensava: ‘Caralho, Nossa Senhora Aparecida d’O Alto da Compadecida’ tá na minha frente”. Esse papo, na íntegra, você lê a seguir.

Papelpop: Vamos começar falando de “Silêncio”? É uma proposta totalmente diferente e isso me surpreendeu de uma maneira muito positiva. Como surgiu a ideia desse clipe?

Emicida: Vamo lá! Eu acho que todas as vezes que a gente presencia uma experiencia de grandiosidade, não necessariamente criada por nós, humanos, mas pela natureza, por exemplo, se faz silencio. Imagine um alpinista, que chega ao topo e entra num estado contemplativo. O ambiente religioso também exige postura… A gente compartilha com os nossos irmãos e irmãs um disco que é um retrato do que há de mais grandioso em nós, de algo que foi criado pela natureza: a existência humana. É magico oferecer calma e contemplação. Sempre penso no John Cage, maestro, que produziu uma peça chamada 4’33. Maluco! Quando ele entrou no teatro, ficou quieto. Porra, abriu o piano, encarou e ficou quieto! O nome disso é movimento happening. Naquele momento, o que que interessava? Não era o espetáculo, era a reação das pessoas à manifestação e ao momento de pausa, que gera expectativa. Pra mim o que interessa nesse momento é a relação que se estabelece nos encontros que a vida proporciona. Eu e você, agora, isso só existe porque a gente se encontra – e “AmarElo” têm isso na sua essência. Essa faixa de abertura é uma experiência de quase meditação, criada pra ser servida antes do “banquete”. Você se limpa de todo o barulho, do caos e da informação pra então presenciar algo grandioso.

Antes de fazer esse disco, você fez uma viagem a Cabo Verde que eu soube que mexeu com você. Como foi isso, de que maneira exatamente que esse acontecimento te impactou?

Eu estive em vários lugares e isso teve início ainda no meu disco anterior, em que falo sobre a África. Angola, por exemplo, eu voltei e tive a chance de conhecer, de viver um pouco mais. Você já conhece? Deveria ir, e olha que eu não ganho comissão vendendo passagem pra dizer isso. É incrível! A gente acredita que a nossa cultura foi definida pelos europeus, mas chegando lá você percebe que há uma relação direta entre os nossos sorrisos, nossa beleza, nossa fé, nossa vontade de vencer e em um desejo de construir coisas positivas, ainda que isso faça com que você se estrepe. A gente levanta e continua, não é? Sempre me toca quando visito esses lugares, além da parte ligada à religiosidade. O Japão também me marcou. Todos esses lugares me fizeram brisar muito no silencio e, claro, reverenciar coisas. A gente abre o disco falando de fé por causa disso. É o elemento de saúde, que faz as pessoas acreditarem no invisível, no que há além deste campo físico. Isso nos reconecta, nos alinha. 

Você também tem uma relação estreita com a poesia. Nesse disco há referências a Paulo Leminski, Alphonsus de Guimarães, Chico Buarque… O que você anda lendo agora? 

Agora eu tê lendo de novo (risos) um livro chamado “A Vida Secreta das Arvores”. Tem muito a ver com o disco, fala sobre como as plantas e os animais se comunicam entre si. É uma viagem. Mas gosto também de observar poetas vivos, que tão por aí e não se declaram poetas. Eu olho pra isso e digo ‘Caralho, que foda!’. Essas pessoas, que sentam num bar e dizem coisas bonitas, profundas, tem nas mãos o estado vivo da poesia, que pra além de uma determinada estrutura sofisticada, há emoção, sabe?

Esse disco é como se você tivesse escrevendo várias cartas de amor e há também um tom mais ponderado, conciliador. Isso vai na contramão do Brasil dos últimos anos, polarizado… Como você avalia hoje esses discursos reacionários?

Sabe qual é pra mim a maior crueldade nesse momento? Quando olho pra uma pessoa como você e acho que a única razão pra ela estar ali falando sobre determinados assuntos é uma política panfletária. Sua vida é composta por um milhão de camadas. Tenho que entender você como uma folha em branco, baseado em experiências, origens, emoções… Tentar usar e encaixar todo mundo nesses estereótipos é muito perigoso, surge aí um discurso pautado pelo ódio, que volta e meia tá associado aos caras da presidência. Nós nos desconectamos da capacidade de aprender e trocar com humildade. É algo que precisamos reaprender. Como eu vejo esses discursos criminosos? Isso sequestra a nossa grandeza enquanto ser humano. Somos nivelados por gente pobre de espírito e isso não pode.  

Falando sobre sonoridade… a música sacra tá presente neste álbum. Você trouxe isso pra uma perspectiva brasileira e eu fiquei curioso… Como você chegou à ideia de buscar referências no candomblé, de produzir esse som mais espiritualizado?

Eu cresci no meio da macumba (risos). O que acontece em “AmarElo” já estava em mim, não consigo não ser isso. Quando mergulho na minha segunda infância, dos 5 aos 12 anos, me encontro com o budismo, as igrejas evangélicas… e aí pensando no gospel, os corais, aqueles negrões na igreja, eu acho tudo muito lindo, mesmo sendo muito norte-americano. Queria uma expressão que remetesse à nossa realidade e a música sacra brasileira, essa música que está nos terreiros. Não que ela não esteja presente em outros espaços, nas manifestações muçulmanas, judias, claro que há também. Mas a que está mais próxima de mim é essa e é linda, porque é aberta e se conecta com as demais. O candomblé, que trago pra este trabalho, é incrível e brilha junto com as demais. Uma coisa que aprendi na África é que Jesus e Oxalá nunca entram em conflito. Eles colaboram. O erro acontece quando se vira refém de uma mentalidade de instituição, quadrada, já que a espiritualidade é um ciclo. Eu vou atrás de algo porque tem força pra conectar, fazer chorar, cantar… E a gente precisa acreditar pra seguir em frente.

Você traz a Pabllo e a Majur em “AmarElo”, um manifesto. Há grupos e artistas LGBTQ+ surgindo cada vez mais no rap, há muitas meninas maravilhosas como a própria Drik Barbosa, MC Tha, Linn da Quebrada, Jup do Bairro… diante dessa abertura, o que o rap representa hoje?

[O rap é] Uma plataforma que nasceu pra dar voz a quem não tinha. Em algum momento tropeçamos, não cumprimos com o nosso papel como humanos em sua totalidade. Estamos voltando pras nossas origem, realinhando. Quando Quebrada Queer ascende, isso é rap em sua essência pura. São vozes, cada um dentro da sua realidade. Aliás, adoro a Linn da Quebrada! Foda demais!

Eu tô lendo o livro de memórias da Fernanda Montenegro e eu fiquei muito feliz quando soube que vocês estavam gravando “Ismália”… como foi estar com ela em estúdio? Vocês já tinham se encontrado antes?

Mano, ela topou na hora. Encontrei com a Fernanda duas vezes e só nos cumprimentamos. Quando fiz o convite, queria muito que ela trouxesse essa aura própria do teatro, que envolve uma interpretação profunda. “Ismália” é um canção grandiosa, com um tônus que precisava “daquela” interpretação. Queria a princípio um jogral feito entre ela e Ruth de Souza, mas esta última acabamos perdendo em julho. Fiz o convite e fiquei emocionado no estúdio. Ficava olhando ela gravar e pensava “Caralho, Nossa Senhora Aparecida de ‘O Alto da Compadecida’ tá na minha frente’ (risos). Se isso não é vencer… Eu sou um cara sensível, meto a postura, ajo como se fosse tudo natural, mas a real é que fiquei bambo. É a Fernanda, sabe? Trazer ela, o Zeca, Dona Onete… pessoas que são pilares da tradição cultural, oral, gente que conectou e fez esse pais sonhar, rir, chorar e explodir de alegria, mas também refletir sobre a tristeza… Como me dar o luxo de ser pequeno?

Você falou sobre interpretações profundas, teatro… o lançamento de ‘AmarElo” acontece no Theatro Municipal de São Paulo no dia 27 de novembro. É algo bastante simbólico… 

Com certeza, porque foi lá que em 1978, há 40 anos, o Movimento Negro Unificado gritou seu sonho de emancipação. É algo especialmente simbólico a ocupação daquele espaço, daquela escadaria… é um lugar que foi palco de uma reivindicação de pretos por vida e direitos. Na data que escolhemos pro lançamento de “AmarElo”, uma geração fruto de sonhos vai passar por ali.

Pra fechar… diante de uma narrativa que abraça, que conversa com todos os públicos, a gente pode dizer que esse trabalho é mais propositivo que os demais? É um momento de reflexão?

Mmmm, eu não diria proposito. Nos anteriores havia igualmente uma série de camadas, mas sempre disseram que meu trabalho, e consequente repertório, vinham do ódio, da raiva, do combate…  Mas se você observa com serenidade uma pessoa fome e sede trancada em um lugar escuro por três dias, qual será a reação dela ao se abrir uma porta e ser oferecido um copo com água? Quem é radical é quem anda de skate (risos).

 

Já ouviu “AmarElo” hoje?

Share
Leave a Comment

Postagens recentes

  • cinema

“Ainda Estou Aqui”, “Wicked”, “A Substância” e mais filmes que não saíram da boca do povo em 2024

Rápido. Sem trapacear abrindo seu perfil no Letterboxd. Por qualidade, bilheteria, prêmio, meme ou qualquer…

18 horas atrás
  • música

Post Malone faz show no VillaMix, festival marcado por atrasos e cancelamentos

Ele pisa no Brasil e já sabemos que vai chover 🇧🇷🌧️ O divo Post Malone…

19 horas atrás
  • música

Chris Brown “voa” em pleno Allianz Parque, durante primeiro de dois shows ‘sold out’ em SP

TÁ VOANDO, BICHO! Sem pisar no Brasil desde 2010, Chris Brown aterrizou sua nave de…

20 horas atrás
  • música

Atração do Festival Psica, Brisa Flow terá doc inédito e turnê pela América Latina

Brisa de La Cordillera, mais conhecida como Brisa Flow, é uma cantora mapurbe marrona, MC,…

21 horas atrás
  • cinema

“Hurry Up Tomorrow”: filme de The Weeknd ganha data de estreia no Apple TV+

Aos pouquinhos, o cantor The Weeknd vai liberando o calendário da nova era. O filme…

1 dia atrás
  • música

Os dez momentos em que Madonna, put4 e satanista, causou em Copacabana

O show que a cantora Madonna realizou no Rio de Janeiro, em 4 de maio…

2 dias atrás