Quando Rita Lee e Roberto de Carvalho compuseram “Alô Alô Marciano”, nos idos da década de 1970, talvez não fizessem a menor ideia da atemporalidade que assumiria aquela canção, dada de presente para a amiga Elis Regina. A letra narra um Brasil à beira do colapso. Canções, aliás, eram coisas que Elis sabia muito bem como tomar pra si e transformar em algo grandioso. Por suas interpretações, entrou para os anais da história muito antes de sua morte precoce, em 1982. Teve seu trabalho reconhecido em vida, ainda bem.
Cantou a rotina indigna dos boias frias, a crueldade do exílio e o conforto da Lei da Anistia durante o período da ditadura militar. Mas foi com “Alô Alô Marciano” que brincou com algo que sua amizade com Rita sempre desprezou: a prepotência e os achismos que fizeram da sociedade brasileira algo tão tragicômico. O fato é que, em meio a tantas regravações já feitas, chega mais uma nesta sexta-feira (11). A intérprete da vez é a cantora baiana Illy, que honrando o posto de revelação da música brasileira, tem em Elis uma de suas grandes referências. O plano é pavimentar o caminho para, em novembro, entregar ao público um disco inteiro com versões da musa.
“Minha relação com Elis começou em casa. Pais, avós, tios… Venho de uma família bastante musical e que ouve muita MPB. É o que mais gosto de ouvir”, diz, suavemente por telefone. “Tenho uma discografia gigante dela e são músicas que sempre fizeram parte do meu repertório, de minha vida, dos saraus que sempre fazíamos em casa. Cantava também nos barzinhos onde comecei, no Nordeste”.
Embora a tarefa possa parecer assustadora, Illy revela ao Papelpop ter encontrado na produção do disco, ainda sem título, um desafio. Pudera: em suas duas décadas de carreira, Elis gravou mais de 350 músicas. Imagine você diante da tarefa de escolher quais gravar ou não. Logo, a seleção do repertório se mostra um verdadeiro trabalho de curadoria, feito aqui a partir daquilo que mais se relacionava com sua essência: a Bahia, a maneira de interpretar e a doçura da memória afetiva. “Resolvi ir por um caminho que tivesse a ver comigo. Tem muita coisa de ‘Falso Brilhante’, que adoro, umas coisas de bolero… curto muito isso das ‘canções’. Quis buscar o que combinasse, coisas que já cantava desde menina e tivessem uma linguagem próxima”.
Apaixonada pela música brasileira, Illy escolheu como parceiros nesta jornada Gabriel Loddo e Guilherme Lírio, que assinam ao seu lado a produção do álbum. Intensa, mergulhou de cabeça nos discos e trouxe para suas versões um som moderno, meio estelar, tão intenso quanto. Buscou aquilo que fosse mais contemporâneo. “Outro dia Baco Exú do Blues estava em minha casa e ouvindo ‘Me Deixas Louca’ brinquei com ele: ‘Você poderia ter feito essa música’. Há faixas atemporais e ao mesmo tempo em que em algumas existe um português que já não falamos mais, é curioso. Ainda há um diálogo, uma coisa bem atual, uma poesia fácil’.
Ao registrar as canções, Illy encontrou em “Alô Alô Marciano” uma certa urgência, assim como pedem os tempos modernos. “As coisas precisam ser ditas, lançar este single agora foi proposital. Tudo continua do mesmo jeito, com o ‘high society’ cada vez mais down”. Além do som, repaginado com arranjos sofisticadíssimos, o clipe da faixa está pra chegar. Da mesma forma vem acertando em cheio a atualidade. Com a arte cada vez mais em descrédito, buscou em produções como “Bacurau” e o ensaio fotográfico de Fernanda Montenegro para a revista Quatro Cinco Um, em que aparece vestida como uma elegante bruxa, uma série de ricas e atuais referências.
“Precisamos falar sobre a visibilidade da cultura. Pedro [Henrique França], que assumiu a direção, foi sagaz ao trazer criações como estas”, diz. “Além disso, buscamos referências em fotografias de Rock Boamorte, fotógrafo baiano, e em temáticas que passeiam por sentimentos que permeiam nosso cotidiano. Não ficamos só no sociopolítico e acho que a questão é não ser agressivo. Temos ido por outros caminhos para que o público receba de uma maneira mais fácil”.
Os clipes, aliás, tem ganhado um grande espaço em sua obra. Um claro exemplo disso é “Djanira”, trabalho lançado em julho deste ano. Sempre preocupada com a comunicação, aqui ela conta com a participação de Mart’Nália e Giselle Itié para lançar luz sobre a luta pela não estigmatização da maconha e seu uso recreativo. A produção foi lançada às vésperas de mais um debate sobre a legalização da erva no Superior Tribunal Federal.
“Todas as minhas músicas têm alguma mensagem, vai de quem está ouvindo ter essa sacada. Apesar de cantar ‘doce’, as pessoas adoram dizer isso (risos), estou passando um recado. Em ‘Só Eu e Você Na Pista’, que gravei com Duda Beat, minha amiga, faço uma crítica ao uso demasiado de redes sociais. Em ‘Fama de Fácil’ falo sobre empoderamento feminino, de marchinhas de Carnaval preconceituosas. Em ‘Djanira’, da mesma forma. Isso serve para dialogarmos com a turma”. Sobre as conversas constantes que o gênero tem com imagem, coreografia e cores, comenta o quanto adora: “Vivemos agora uma evolução da música. Sou da MPB, mas também há algo de pop no meu trabalho. Se as coisas pendem para este lado, por que não experimentar?”.
Illy também diz acreditar que, se estivesse viva, Elis seguiria a mesma tendência de atualização. “Acredito que ela não só estaria lutando pela nossa cultura, sendo ativista política, como com certeza também estaria seguindo essa evolução musical. Você sabe, ela fazia clipes lindos no Fantástico, foi uma mulher que sempre esteve à frente do seu tempo, assim como é Gal: estratosférica (risos)”.
Neste ano, além de regravar clássicos da pimentinha, a cantora também se dedicou a outro projeto de versões. No mês de janeiro ela participou do disco “Nada Ficou no Lugar”, que traz releituras de canções de Adriana Calcanhotto na voz de jovens nomes da música brasileira. Embora hoje seja dona de uma identidade forte e bem delimitada, Illy diz rindo que no início da carreira cantava em tom de imitação. “Fazia as divisões, aquela voz de cantora de rádio. Fui me descobrindo nas músicas, estudando música, cantando, conhecendo meu timbre. A maneira de interpretar, nos dois projetos, me fez pensar como me desvencilharia. Não poderia fazer trejeitos e trazer coisas que gosto. Fui de uma maneira mais calma, sem querer competir com aquela voz. Este é meu caminho de intérprete”.
Atenta ao que surge na indústria, a cantora chama a atenção para seus conterrâneos, tão abertos quanto ela a novos sons. Representante de sua geração, sua grande aposta está na diversidade. “Luedji Luna, Josyara, Xênia França e Baco Exú do Blues são alguns dos nomes que estão arrasando. É tudo muito original, existe muita história musical no trabalho dessas pessoas, profundidade. Não estão cantando qualquer coisa”.
O cenário atual, marcado pela ascensão de grandes compositores, pode até dizer entrelinhas que a artista segue na contramão. Por outro lado, a verdade é que esse pode ser um jeito de conhecer e sentir em dobro a própria essência musical. “Sempre gostei de cantar e interpretar e presto muita atenção em melodias e letras complexas. Até agora não compus nada que me arrebatasse tanto quanto o que recebo dos compositores com quem colaboro”. Ela diz não se incomodar em receber canções e que está satisfeita com a quantidade de mulheres escritoras. “Não tínhamos tantas”.
No próximo dia 16 de outubro Illy leva suas versões para o palco do Theatro NET Rio, na capital carioca, em um show único e que adianta o conteúdo do disco. Na ocasião, ela conta com a participação de Silva, um grande amigo seu: “Brinco sempre que temos uma aproximação de almas musicais”. Ao lado deles e dos produtores Guilherme Lirio e Gabriel Loddo, que também fazem parte de sua banda, estão ainda os jovens Antonio Neves e Marcelo Costa – rapazes a quem adereça o título de prodígios. O show, nas palavras da própria, vem transbordando significados e com ares de renovação. “Ao escolher esta banda, quis ter um distanciamento, ouvir o que eles tinham de frescor. Alguns nem escutavam Elis, nem tinham ela como a figura de um ídolo, mas me mostraram novas possibilidades”.
Não há dúvida do sentimento depositado ali. Vivendo uma das fases mais transformadoras e ternas da vida, a maternidade, Illy explica como o período influenciou diretamente a gravação de suas canções de Elis. Para ela, o momento é de extrema sensibilidade. “Este é com certeza o ponto mais importante da minha carreira. Grávida, cantando uma grande ídola, de uma maneira tão profunda e rica. É muito forte, porque tem outra pessoa dentro de mim e estou falando para uma próxima geração na companhia dela. Me sinto encorajada”.
“Alô Alô Marciano” na voz de Illy está disponível em todas as plataformas digitais.
Fotos: Julia Pavin (destacada) e Rocca (capa).
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