No Brasil, o rap é um gênero que goza de uma estabilidade quase que constante. Não raro convida seu ouvinte a imergir em rimas ricas, refletindo o que há de mais urgente e atual na sociedade. A questão é que nos últimos anos o que se tem visto, para além deste otimista e criativo panorama, é a ascensão de nomes que, além de talentosos, reforçam a potencialização de identidades, inerentes à maioria de seus artistas.
A paulista Drik Barbosa, que lança nesta segunda-feira (11) seu primeiro álbum de estúdio, é um claro exemplo disso. Para o projeto, autointitulado, ela buscou refletir o que há de mais honesto em sua natureza ao construir descrições poéticas da dura rotina dos pais durante sua infância. Também estão lá os esforços que fez até aqui para se manter como artista e sua luta como mulher negra em um cenário marcado por embates contra o conservadorismo e o preconceito.
Por telefone, Drika bateu um papo com o Papelpop na tarde desta quinta-feira (10). Disse realizar um sonho. Movida por sua “língua afiada”, como canta em uma das faixas do projeto, ela segue sonhando na contramão de mentes obsoletas e atrasadas que não valem de nada.
Drik, que outra maneira se não começar falando sobre este debut lindo! Como tá o coração nesse momento?
Nossa, lançar um disco é muito simbólico! É meu primeiro álbum e apesar de já ter tido um EP, sempre quis um formato mais longo. Agora, com 11 faixas, pude colocar um pouco de tudo o que eu acredito, o que quero passar com a minha musica, minhas emoções… é lindo chegar nesse momento. São mais de 10 anos fazendo música, de recomeços e agora existe algo de mais concreto, especial. Aliás, tô aqui ensaiando o show novo. É bom lançar um disco quando estamos precisando tanto de musica, de cultura…
Muito se fala sobre inspiração e o rap é um ritmo muito honesto, muito forte. Você compõe muito bem, fala diretamente com o seu público. Como funciona seu processo de composição?
Muito obrigada! Sempre começo pelos beats, sinto o tema que quero falar, sento e fico ouvindo. Só aí as palavras vão surgindo. Neste disco, principalmente, eu quis trazer outros compositores que pudessem agregar ao meu processo de amadurecimento como artista e outras perspectivas de assuntos que queria desenvolver. Muitas coisas foram feitas ali mesmo em estúdio, apenas uma música já existia e foi remixada. Há neste trabalho canções que recebi de presente do Emicida, da Marissol Mwaba, do próprio Rincon [Sapiência]. Eu queria ter a ajuda de outras pessoas que me identifico e que sabia que transmitiriam boas energias.
É justamente onde eu quero chegar. Você reuniu basicamente os maiores nomes do rap nacional no seu disco. Como foi colaborar com tanta gente talentosa assim? O que eles agregaram?
Cara, pra mim é uma realização, porque sou muito fã de cada um, acompanho o trabalho… Tê-los no processo foi muito gratificante. Pessoas como Gloria, Emicida, Rael, me trouxeram um amadurecimento muito grande como artista e espero ter cooperado igualmente para o crescimento deles. Foi lindo estarmos aqui no estúdio criando, espero que o público sinta isso ouvindo.
As faixas estão muito bem produzidas, com várias camadas de som…
Eu e Grou fizemos a maioria das produções, ao lado de [Evandro] Fioti, que assumiu a direção artística e geral. A ideia foi trazer tudo aquilo que me representava. Gosto muito do Brasil, da África, do rap norte-americano… são coisas que realmente ouço. Como unir em um só lugar? Tivemos que testar e criar, sempre atentos ao número de faixas e a um limite. Fiquei muito satisfeita.
Um fato curioso… a guitarrista ArioO’Neal, que toca com Beyoncé e Jay-Z, também participa do projeto. Como isso aconteceu?
(Risos) A Beyoncé é minha maior inspiração… Fioti entrou em contato com ela sem que eu soubesse. Achou o contato dela e escreveu, falando sobre o meu trabalho. Ela se interessou e pediu para ouvir. Super amou, topou participar e só quando tudo já estava encaminhado eu fiquei sabendo. Surtei, obviamente, porque ela também toca com o Jay-Z, a Normani, dois ícones… A primeira vez que ouvi senti meus olhos se encherem de lágrimas. Há muito sentimento no jeito com que ela trabalha, existe um solo poderoso.
Também queria falar sobre “Liberdade” e “Rosas”, duas das canções mais expressivas do projeto e que trazem questões femininas. Vejo muitas garotas se identificando muito com o seu trabalho… Como é pra você enxergar esse retorno das pessoas?
É muito incrível e enxergo como uma responsabilidade muito grande. Falar sobre determinados temas é uma forma de representar coisas que passo, então ser artista e poder trazer pautas como essas é algo natural. A questão é que preciso refletir sobre como isso será feito. Ser consciente de que vão se identificar e que posso motivar, por meio da música, futuras reflexões. Tenho muito cuidado na hora de escrever, de compôr, justamente pela comunicação que existe entre fãs e artista. Não posso falar só sobre aquilo que se quer ouvir e sempre busco colaborar com pessoas que acreditam nas mesmas coisas que eu. Não adianta pensar de um jeito e falar de outro, soa falso. Então… acredito que cumpro meu papel, além de artista, como mulher e negra no Brasil. Vejo uma devolutiva muito positiva.
Outros dois temas que estão presentes ali são infância e ancestralidade. Como foi pra você revisitar isso, de onde surgiu o interesse?
Desde o inicio, quando decidi fazer um disco, quis contar parte da minha história. Não quero que escutem e não me conheçam. Que só recebam e não entendam minhas linhas de raciocínio. Quis abrir o projeto assim e por essa razão ele traz o meu nome. Há muito do meu universo, do que vivo e vejo da vida. Lançar canções como essas é uma forma de festejar a minha vida, todos os corres feitos até agora e de lembrar o que fiz até então. Inclusive, agradeço muito à minha família, sem eles nao seria nada, tendo a oportunidade de fazer o que faço e de trabalhar com o que amo. Sou cobrada o tempo todo, sigo com o pé no chão, valorizando o que tenho e as pessoas ao redor.
Você também costura referências do pagode 90 e do funk brasileiro, que aliás, tem ganhado muito espaço nos festivais de música mainstream. O Rock In Rio foi um claro exemplo disso e do respeito crescente que o público tem tido, assim como já acontece com o rap. Como você enxerga esse processo de popularização dos gêneros?
É algo necessário. A gente tem um problema sério: fingir que a maior parcela da sociedade não existe, não cria, não coopera para o desenvolvimento da cultura. Que muito menos se expressa e isso faz parte de um processo de silenciamento. Vemos Rennan da Penha preso e várias outras coisas injustas acontecendo com o nosso povo, com quem é da quebrada. O que rolou no Rock In Rio é um manifesto gigante. Todas as vezes que um MC de rap ou de funk abre a boca em um local como esse é um manifesto. Temos que desconstruir, tirar esses gêneros das margens ritmos que são essencialmente brasileiros. As pessoas se esquecem de que essa música fala sobre a realidade. Se há versos sobre o crime, é porque ele existe. Se há letras sobre a objetificação da mulher, é porque precisamos trabalhar para mudar. A expressão ajuda na mudança, sabe? Ver tudo isso acontecendo é foda demais, principalmente quando penso que nossa música tem sido cada vez mais apreciada por outros países, alcançado novos públicos. Por isso quis experimentar nas minhas novas músicas.
Pra fechar: em “Herança” você rima com palavras como ‘superpoderes’ e ‘arte’. Isso me remeteu ao status atual da cultura no Brasil, claramente ameaçada com episódios de censura, cortes… Quais são os maiores desafios de um artista hoje no Brasil?
Você usou a palavra certa. Ser artista no Brasil é extremamente desafiador. A gente sempre corre riscos todo o tempo, porque, acima de tudo, a indústria é seletiva. Rap, mulher, preta… tudo isso influencia, sempre foi uma luta e agora isso se potencializa com o governo que assumiu. Por outro lado, há coisas positivas. Há poucas semanas fiz uma mini turnê por oito Sescs de Santa Catarina, estado em que o Presidente da República teve a maior porcentagem de votos. Quando gritei que precisávamos manter a cultura viva, muita gente retribuiu com gritos e com palavras de força. Nós não estamos sozinhos, ainda há quem se preocupe e isso nos dá um gás. Enquanto cidadãos e artistas temos muita força, só não nos unimos ainda. Cultura é como saúde, educação… é o básico. Existe um puta risco pra nossa sobrevivência, é claro, eu preferia estar em outro momento, mais tranquilo da sociedade. Não precisar falar de machismo, racismo, mas isso existe e preciso seguir criando. Quando fui lançar meu primeiro EP, infelizmente a data prevista coincidiu com a execução de Marielle Franco. Me questionei se de fato deveria seguir adiante, dar a luz ao projeto e comemorar algo especial… e era. Não é pra deixar guardado. Espero transformação na mente das pessoas e é ótimo ver quem está na mesma frequência que eu. É preciso correr riscos. Se me calo, não há transformação.
Ouça o disco de estreia de Drik Barbosa em todas as plataformas digitais:
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