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música

Céu canta tecnologia, maternidade e verões amargos no disco “APKÁ!”

Não foram raras as vezes em que Céu ouviu os filhos Rosa (10) e Antonino (1) repetirem uma palavra específica durante suas brincadeiras. Estranha e sem ter um significado que caiba no dicionário, “Apká” talvez se conecte mais a um conceito afetivo do que com a própria língua portuguesa. Este nada mais é do que um grito que simboliza ao mesmo tempo amor, felicidade e, por que não? agradecimento.

Entre situações que renderam boas gargalhadas e o alcance de um estado de plenitude, prontamente compartilhado pelo pequeno, essa onomatopéia foi escolhida pela artista para batizar seu novo álbum de estúdio – o primeiro após o elogiado “Tropix”. Com muito entusiasmo, “APKÁ!” (escrito assim mesmo, em maiúsculas), nasceu na contramão dos lançamentos feitos na era digital.

Chegou sutilmente nos primeiros minutos da madrugada de uma sexta-feira 13, sem aviso prévio. “É divertido dormir e acordar com o som novo, né”, diz Céu por telefone.

Contramão, aliás, é uma palavra que está em seus fundamentos. Ao mesmo tempo em que mergulha nos dilemas da tecnologia e de suas dissimulações, o novo cancioneiro entrega composições pautadas em temas como o parto natural e a explosão de ocitocina, que toma conta da mãe. São jogos de palavra feitos com base em acontecimentos inerentes à história humana. Há espaço para amor, redes sociais e política. Minimalistas, as faixas se mostram abertas a interpretações.

Com produção assinada pelo parceiro de longa data, Pupillo, e Hervé Salters, tecladista do grupo francês General Elektriks, “APKÁ!” é um presente de Céu para o público, tal qual o que lhe foi dado por Caetano Veloso: a composição de “Pardo” foi fruto de um pedido feito por e-mail em um arroubo.

Após três anos percorrendo caminhos tortuosos de um Brasil que parece negar a arte, mas, ainda bem, não deixa de consumi-la, Céu fez as malas rumo a Berlim – a mesma cidade que inspirou David Bowie a fazer sua trilogia nos idos anos 1970. Seria lá a gênesis do projeto.

Nesta conversa, falamos sobre criação, novo show e o status atual da música independente. Para ela, há uma série de análises pendentes. “O momento é ideal para escutarmos uns aos outros, pensar com mais amor e carinho. Existem ajustes a serem feitos e eu desejo poder ver isso acontecendo”.

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Papelpop: “APKÁ!” chegou de surpresa, eu mesmo tomei um susto… (risos) houve uma razão específica pra isso acontecer? 

CÉU: Houve. Eu quis priorizar os fãs, quem curte o som, sabe? É divertido dormir e acordar com algo novo de um artista que a gente curte. Quando acontece comigo, eu amo, era uma maneira de presentar quem sempre está junto, quem estava ali esperando algo.

Existe uma história muito fofa sobre a origem do título do álbum, que teria sido dado pelo Antonino. Depois você também compôs “Ocitocina (Charged)”, que narra o momento do parto. A maternidade impactou esse projeto de uma forma intensa…

Sim! E muito! Eu confirmo essa historia do título, era o que mais fazia sentido porque foi a palavra que mais escutei nos últimos tempos. Por trás deste nome existe um sentido de muito amor e satisfação. Ele falava “APKÁ!” muito feliz e a minha filha mais velha repetia. Nisso os dois morriam de rir e seguiam repetindo… Eu falei ‘Cara, é a palavra do momento, capaz de traduzir o que este trabalho significa’. É uma forma de externar um mundo particular, algo que vem de um universo micro, rumo ao macro.

Você já fez a estreia ao vivo de “APKÁ!” e nos próximos meses a turnê segue pelo Brasil. Como é a sensação de levar um disco pros palcos? 

Ai, é muito gostoso! O ‘começar’ é sempre divertido, é algo que faço com muito carinho. Gosto de me cercar de gente que acho foda, de músicos incríveis, de uma galera que tá junto na estrada e está, acima de tudo, entregue, fazendo tudo de coração. Pra gente sempre tem uma nova história e esse show tá muito legal não apenas pelas canções novas ou pelas antigas, que foram retrabalhadas, mas porque existem elementos que nunca usamos antes. Há um plus!

Com cinco álbuns de estúdio lançados selecionar o repertório acaba se tornando mesmo um trabalho de curadoria, né? 

Isso é muito interessante porque hoje em dia, com a internet, fico meio perdida. Tenho mais acesso ao que os fãs querem e isso, de certa forma, serve como uma direção para as nossas escolhas. Às vezes penso que algumas coisas podem agradar, que talvez funcionem, mas pode ser também que algo que leio me surpreenda? Foi nessas que a gente quase deixou de tocar ‘Rotação’. A princípio não entraria, mas em minhas buscas notei as pessoas comentando muito a respeito e é uma música que ficou linda no palco. A palavra é exatamente esta que você usou, curadoria. É importante dar essa atenção e entender o que os fãs querem escutar.

Você trabalhou as bases do disco em Berlim e eu de imediato me lembrei de David Bowie, que viveu na cidade e se sentiu extremamente influenciado ao ponto de criar uma trilogia (Low, Heroes e Lodger). A sua estadia foi breve, mas você trouxe para o projeto algo desse período que passou na cidade?

Menino, você foi sagaz nesta pergunta (risos). Primeiro, eu adoro essa fase do Bowie e, ah, Berlim me encanta profundamente. A gente ensaiou passar um período longo, com a família, levar as crianças, mas desistimos. Vivenciamos essa fase, que apesar de curta, foi suficiente. Apesar de já ter uma certa relação com a cidade, de fazer shows lá, trabalhar nas músicas no estúdio do Hervé [amigo e produtor do disco] foi extremamente inspirador. Ele é um cara sensível, possui um maquinário incrível. Como eu ainda estava banhada por hormônios, foi muito poderoso, uma delícia.

Também há muitas referências à era digital nesse disco, a começar por “Off (Sad Siri)”…

Verdade! É um disco que fala de contrastes, de todas as formas. Um dos pontos que eu eu queria apresentar era justamente a exaustão existente nas questões que dizem respeito a digitalismo versus realidade, inteligência versus carne e osso. Eu acho que é interessante tudo isso que a internet nos trouxe, há uma grandiosidade. Por outro lado, o processo de “robotização” das coisas também é preocupante. Às vezes parecemos zumbis e pensar nisso é pensar em algo que nos é contemporâneo. Gosto de alfinetar e ao mesmo tempo em que falo sobre isso, resgato algo super primitivo: o parto natural, humanizado. Ali eu tô indo em busca do meu bebê em uma viagem inspirada naquela coisa do Talk a walk on the wild side [verso extraído da canção de Lou Reed]. Somo a isso um verso em que falo sobre ocitocina e digo que eu tava “charged”, um termo totalmente eletrônico, sabe? É minha maneira de propôr uma reflexão sobre o quão intenso é o que vivemos hoje.

Mesmo não sendo tão explícito, “APKÁ!” tem composições que se manifestam de uma maneira mais política. Como você enxerga essa questão da literalidade das letras?

Mmm, não é minha cara fazer coisas super literais, eu não sei fazer, juro pra você. Eu não tenho nenhum problema com quem faz canções mais panfletárias, só não é da minha natureza. Não sei se é por uma questão minha de pensar em atemporalidade, em produzir faixas que possam atravessar o tempo… Talvez coisas que são muito pontuadas por uma questão específica estão sujeitas a não ter uma vida tão longa. É minha maneira. Uma outra coisa que gosto muito é de dar espaço pras reflexões. Fazer música tem disso, estar aberto ao retorno que o outro dá. Quando eu faço um som, tenho em mente que as pessoas que ouvem vão me entregar uma resposta. É algo quântico, faz parte da química, da historia e eu respeito muito isso. É parte do nosso trabalho e lançar um disco é só o começo. Tudo é muito orgânico, vai acontecendo.

Este álbum tem entre seus colabores Seu Jorge, Dinho Almeida (Boogarins), Tropkillaz e Caetano Veloso, que entra como compositor de “Pardo”. Como isso aconteceu?

Foi lindo, tive a audácia de pedir uma canção pra ele. Tava vivendo meu puerpério, com mil emoções e ele foi muito generoso, doce, um querido. Me disse “Sim”, que topava fazer a música e quando chegou eu fiquei maluca, né? Caetano é um pedaço inteiro do Brasil e “Pardo” é uma musica exatamente como eu queria que fosse, “caetânica”, que você ouve e sabe que é ele quem está por trás. Claro, tivemos o desafio de trazer pro meu universo e não descolar das demais que vínhamos produzindo, mas fizeram isso de forma brilhante.

À exceção de “Pardo” e “Make Sure Your Head Is Above” todas as faixas são composições suas. Outro dia li um texto da Salma Jô, líder da Carne Doce, em que ela dizia que o processo de composição era um pouco doloroso. Como é pra você?

Pra mim é um trabalho. Um trabalho que não é simples, algo do tipo “Pronto, compus e saí”. É algo que tem que ser pensado com uma certa naturalidade porque a gente tem que estar com a antela ligada, ser honesta… Requer muita disciplina e, por ser uma construção, dá um trabalho danado. Às vezes é doloroso mesmo, porque acho que as pessoas que se envolvem com a composição de uma maneira muito pessoal trazem temas importantes para si – o que as deixa muito expostas. A gente sempre se expõe, na verdade, nos sentimos nus. Eu mesma escrevi no dia em que lançamos “APKÁ!” que não sei por que faço isso (risos). É estranho enxergar as coisas de um modo tão pessoal. Por que fiz? Pra quê? Depois você vê que é isso que tem que ser feito e a melhor coisa que você pode ser é porta-voz do que o outro sente. É um dever.

Eu fiquei muito curioso quando li que você compôs “Coreto” com Gal Costa na cabeça. Que imagem de Gal você visualizou naquele momento?

Gal veio em partes (risos). Eu soube que ela estava buscando composições para “A Pele do Futuro” e aceitei escrever algo como um exercício de composição. Aquele verso “Eu sou a voz que balançou o seu coreto” foi feito pensando nela. É uma voz vulcânica, dona de uma força que acalora, queima. Só que aí, a letra caminhou pra outro lugar e estacionei. É muito comum no processo e aí você pensa, dá um tempo, retrabalha. Peguei de novo e percebi que estava tarde e já não era mais algo dela, e sim do meu universo. Quem me conhece pessoalmente sabe que eu amo karaokê, zoar, ficar num modo xôxo e “Coreto” assume esse tom de brincadeira ao falar sobre não tocar nas rádios, mencionar o “Alpha By Night” e trazer essa mulher louca, dona de si, que faz o que quer. Há muitas camadas de interpretação.

No fim de semana foi publicada uma entrevista com Milton Nascimento em que ele fez duras críticas ao consumo mainstream. Houve ruídos, as opiniões ficaram bem divididas. Você concorda com essa fala de que essa parte da indústria impede que o público conheça novos sons, se aproxime da cena independente?

Concordo com você quando diz que houve muito ruído nessa conversa, acho que ele é um gênio, um homem brilhante e que se referia a um nicho específico. Quem leu sabe que rolou um trabalho de edição e o título trouxe uma coisa que não era exatamente aquilo que ele estava dizendo. É igualmente perigosa essa maneira inflada de responder a determinados acontecimentos, muita coisa precisa ser falada pra que haja uma mudança, mas acho que temos que ter um cuidado pra não caminharmos rumo a um lado equivocado. Sobre a cena, acho que é bem puxado pra artistas independentes chegarem aos ouvidos da massa. É muito difícil, porque a seleção é massacrante, temos pouquíssimo espaço e existe um buraco estes dois nichos. Não há um lugar de receptividade e mais uma vez estamos falando de contrastes. É também uma questão que diz respeito a como a mídia, o jornalismo e o dinheiro trabalham. Existem ajustes a serem feitos e eu desejo estar aqui, viva neste mundo, pra ver isso acontecendo. Seria uma coisa fantástica. Temos que transformar e não apontar dedos.

E qual é a análise que você faz do momento artístico que vivemos?

Quando você me fez esta pergunta vieram várias coisas à minha cabeça. A gente vive um periodo de muita diversidade, com coisas interessantes acontecendo, mas ainda é muito difícil. O apoio à arte é zero, estão tirando cada vez mais de nós, ao mesmo tempo em que não se deixa de consumir. É curioso o porque dessa retirada, da falta de apoio e de estrutura. No entanto, o que o ser-humano sabe fazer de melhor é ser um canal de sentimentos, que pode dizer o que o coletivo sente. Tenho o dever, como artista, de traduzir o que se sente e transportar isso pro som. Quem sabe rádios e a própria mídia espalhe o que quero dizer, é um momento de ralação, de muitas brigas e desentendimento. O momento é ideal pra escutarmos uns aos outros, pensar com mais amor e carinho. Aliás, estes sentimentos são as melhores coisas que temos. Por isso mesmo meu disco, ‘APKÁ’, é um grito de amor em tempos de tanto ódio, um trabalho que vem de um espaço micro e segue até um universo macro, sinistro, que é este que estamos vivendo.

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“APKÁ”, novo disco de Céu, está disponível em todos os tocadores.

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