Aretha Franklin está séria, compenetrada. Nem sorri. Não veio pra brincar. Chega pra trabalhar, é profissional. Mal fala. Espera todo mundo estar pronto para começar a cantar. O reverendo James Cleveland, mestre de cerimônias da noite, vai até o microfone no púlpito e conta para todos na igreja em Los Angeles que aquela noite está sendo filmada. O ano é 1972.
O piano está logo atrás do pastor, com um cobertor verde jogado por cima. O clima é muito estúdio de gravação. Nada glamuroso. Aretha se posiciona, senta em frente ao coral, que está quietinho e comportado, esperando a vez deles de cantar.
Aretha fecha os olhos e começa a tocar os primeiros acordes no piano. A banda acompanha, o coral também e ela começa a cantar sua versão para “Wholy Holy”, a música mais gospel do disco clássico de Marvin Gaye, “What’s Going On”. Detalhe: do começo até o fim da música, Aretha está de olhos fechados. Suando, chorando, ela grita, se entrega.
É gospel. É música pra se aproximar de Deus. Eu arrepio escrevendo quando lembro disso, mas no cinema eu estava era chorando mesmo. Não só porque é lindo, porque é música de alta qualidade ou porque é uma das maiores artistas de todos os tempos cantando… É por tudo isso e também porque eu não sabia que ela tinha gravado essa música assim, de olhos fechados, com essa emoção toda.
Todas as músicas que Aretha canta nessa igreja foram gravadas para um disco gospel que ela decidiu lançar. Não precisava naquela altura de sua carreira. Aretha já tinha lançado 20 álbuns, ganhado 5 Grammys, bombado com “Respect” e todas as outras músicas que a coroaram como a rainha do soul.
Mas, em 1972, ela sentiu a necessidade de gravar, com coral, ao vivo, na igreja, e lançar um disco gospel chamado “Amazing Grace”. Atualmente, é o disco gospel mais vendido da história e também o disco mais vendido da Aretha Franklin.
Eu não sabia, até alguns anos atrás, que existia filmagem disso tudo. Sydney Pollack, o lendário diretor de Hollywood, que fez “Tootsie”, “A Firma” e “Entre Dois Amores”, foi quem captou e dirigiu tudo lá nos anos 70. Mas, por problemas técnicos, o filme nunca saiu.
Hoje, graças à tecnologia, conseguiram casar a imagem com o som e o material ficou pronto. A família de Aretha Franklin viu, se emocionou, permitiu que o material fosse exibido e eu tive a chance de ver isso numa sala de cinema em Nova York, num dos poucos cinemas que ainda exibia.
É um documentário. É o registro de uma obra-prima, é a prova definitiva e irrefutável de que nós tivemos entre nós a maior cantora da nossa época. Ver aquilo deu nó na garganta, deu saudade, deu tristeza ver que ela não está mais aqui.
O momento mais emocionante é a parte em que Aretha canta “Amazing Grace”, o principal hino gospel já escrito. Ver a comoção da igreja enquanto ela canta, como ela canta… É de fazer chorar (mais uma vez). É lindo. As palmas do coral, o pessoal na igreja levantando no meio dos gritos dela, Aretha atingindo notas inalcançáveis, as pessoas jogando toalhinhas nela, como se fosse tipo “ah, num dá!”.
No meio da música, ela “desiste” e senta para enxugar o rosto. Está muito emocionada. O órgão continua tocando e ela volta para o palco. O reverendo a segura pelo vestido pela parte de trás. Ele junta uns pedaços de pano na mão pra segurá-la enquanto Aretha se entrega de corpo e alma na música.
Eu nunca vi algo tão histórico, tão poderoso na música… Essa gravação de Aretha cantando “Amazing Grace” é tão marcante e significativa para a música quanto James Brown dançando em “Sex Machine” ou Beatles indo no Ed Sullivan ou a primeira vez que Michael Jackson fez um “moonwalk” ou Jimi Hendrix pondo fogo na guitarra no Woodstock ou Freddie Mercury no Live Aid ou os Stones cantando “Sympathy for the Devil”… é história da música finalmente documentada.
Gravado em dois dias, o documentário “Amazing Grace” tem a presença do pai da cantora, o famoso pastor C. L. Franklin, que vai até o palco falar da filha.
Todas as vezes que a câmera filma Aretha, ela está toda poderosa. Com as mãos na cintura, concentrada, com um blaser gigante vermelho jogado nos ombros, sem vestir as mangas dele, batendo os pés no chão no ritmo da música como se aquilo fizesse parte do corpo dela, com uma segurança impecável.
Masssss… Quando o pai dela fala, nós vemos a cantora tímida, com olhos de criança, toda feliz com os elogios. Ele conta a história de que estava em Detroit, pegando umas roupas na lavanderia e o dono da loja comenta que viu Aretha na TV e achou até legal, mas que ele preferia ela no gospel, que não gostava muito da música soul e pop.
“Mal ele sabe que o gospel nunca saiu de Aretha, talvez ele não tenha escutado direito”, disse o pai Franklin.
“Ela não só é minha filha, mas também uma cantora extraordinária”, completou.
Na música seguinte, outra cena emocionante. Aretha está suada de tanto cantar. O pai, que sabe que aquilo está sendo gravado, vai até ela, pega uma toalha e começa a secar o rosto da filha. Ele cobre a cara dela toda, até os olhos, enquanto ela toca o piano. Filha seca, pai volta para o lugar dele na igreja.
Na plateia, Mick Jagger também aparece lá no fundo da igreja, acompanhando tudo. Ele e Aretha eram da mesma gravadora, Atlantic Records. Quando ficou sabendo que a gravação ia acontecer, foi lá com um amigo e ficou dançando e batendo palma com a maravilha que ele via no palco.
Eu espero que Amazon ou Netflix ou algum serviço de streaming poderoso compre isso logo para que todo mundo veja. Ou que lancem em blu-ray ou algo do tipo. É um dos filmes mais lindos que já vi na vida e, certamente, um dos melhores lançamentos do cinema esse ano (ouviu, Vingadores?).
Se você gostou da excelência black de Beyoncé com “Homecoming”, esse “Amazing Grace” da Aretha Franklin é tipo a mãe Deus do documentário de Queen B. É algo perto do divino. É coisa pra ateu chegar a acreditar que Deus até que pode existir, sim.
Aretha domina a igreja, testa a habilidade do coral e da banda toda hora pedindo pra eles improvisarem. A excelência e o domínio é assustador. Não tem nada mais rock n’roll que aquela entrega, aquela atitude.
Em alguns momentos, Aretha canta com a boca fechada, somente fazendo uns “hmmmmmmmm” e isso já é melhor que centenas de cantoras que a gente ouve hoje.
Ver esse documentário é tipo encontrar a alegria e a felicidade 100%. Nunca saí de uma sala de cinema tão inspirado, tão carregado de amor. Eu aprendi o que era gospel com Aretha Franklin quando era adolescente. Ouvi esse disco até furar. Mas ver isso ao vivo foi como se tivessem tirado uma venda dos meus olhos.
É sobre fé, é sobre música em seu estado bruto, é ver uma cantora extraordinária. Eu saí do cinema com meu maxilar cansado de tanto sorrir e ficar bobo vendo aquilo tudo. Alegria demais faz mal?
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