Imergir na obra de Adriana Calcanhotto é também embarcar em uma viagem pelos 7 mares. É se permitir navegar em ondas serenas e, ao mesmo tempo, sentir uma brisa feroz que sopra do alto. Neste percurso marítimo que traça há 21 anos, a artista constata que as águas já não são mais as mesmas. O que era considerado azul, infinito e belo, converteu-se no produto de uma “tragédia anunciada”, como ela mesmo faz questão de dizer.
Embora mantenha a poesia e o romantismo dos dois primeiros discos da chamada trilogia dos mares, formada a princípio por “Marítmo”, de 1998, e “Maré”, de 2008, Adriana assume agora um tom mais sério ao experimentar novos visuais e composições em “Margem”. O novo álbum de estúdio da artista chega às lojas nesta sexta-feira (7).
Gestado ao longo de aproximadamente dez anos, o material encerra este ciclo com a parceria de Bem Gil, Bruno Di Lullo e Rafael Rocha. A partir daqui, a artista se propõe a um questionamento: afinal, sobre o que cantam as sereias? Sobre amores, ou sobre a destruição das águas? Em busca de possíveis respostas, ela embarca em uma viagem que nem de longe parece ser a última.
Entre cargueiros, camaroeiros e catamarãs que seguem dia trás dia tomando a orla em um trabalho mecânico, Adriana nos convida a dar um mergulho profundo. Por telefone, do Rio de Janeiro, a artista falou ao Papelpop sobre meio ambiente, identidade artística e cultural do Brasil. Leia na íntegra:
Papelpop: “Margem” é fruto de uma inquietação e de um processo criativo iniciado há mais ou menos uma década. Por que encerrar a trilogia neste momento?
Adriana: Tenho o orgulho e a máxima satisfação de dizer que este disco está sendo lançado porque ficou pronto. Parece uma bobagem, mas nem sempre é assim. Muitas vezes a gente precisa entregar o material e ele é lançado no estágio em que está, um estágio que a gente nem considera tão pronto assim. Quando lancei o “Maré” (2008), esse disco começou a brotar do jeito dele e aí apareceu o nome. Uma vez que isso acontece, fica mais difícil você disfarçar que você não tem um disco (risos). Havia duas canções que entrariam naquela ocasião, tínhamos um nome, mas nenhuma pressão, nenhuma expectativa – algo que me fez ter condições ideais pra trabalhar um disco com camadas de tempo.
Você abraça a temática marítima com muita poesia, mas agora também faz uma crítica sobre o meio ambiente. O clipe de “Ogunté” e a própria capa do álbum são exemplos dessa preocupação. Por que esse interesse?
É uma constatação do que a nossa espécie fez e faz com o mar. E agora que os bebês estão comendo micro-plástico? A pressa é muito maior. Os meus outros dois discos de mar não tinham esse sentido de urgência.
Nos clipes você tem trabalhado uma estética de construção x desconstrução. É possível dizer que “Margem” tem um significado que vai além da palavra usada para intitular parte desta trilogia?
Sim, porque “Margem” é uma palavra muito rica, cheia de significados e espelhamentos. A própria condição marginal do artista também está incluída nisso, a margem do mar, que em função da maré nao é fixa; a margem da página, a margem que está no limiar entre início e fim… a margem é rica.
Você tem uma forte ligação com o samba e outras brasilidades como a bossa nova, mas também percebo outras referências neste álbum. Como foi o seu trabalho de pesquisa sonora?
De alguma maneira, minha compreensão de tudo está no samba. Tudo o que faço e escuto dentro das canções e das músicas está centrado no gênero. O disco nasceu programado para isso e fatalmente quando você descasca os arranjos das minhas criações, você encontra samba de um jeito ou de outro. E aí dentro disso, surgem variações. Mas é a base das minhas músicas.
Neste disco você também regrava “Tua” e “Era Pra Ser”, duas composições suas, dadas de presente pra Bethânia…
Isso, fui eu que escrevi. Caso contrário também não precisaria regravar, afinal de contas ela já o fez e ninguém mais precisaria (risos). “Tua” é uma canção mais antiga, senti que tinha que fazer alguma coisa durante uma situação que aconteceu em Roma, ali no calor… E a outra é bem mais próxima em termos de tempo. Acordei com os versos na cabeça e desde o momento em que me levantei e peguei o violão, a fim de não deixar que escapasse a canção, já me parecia muito com Bethânia. Mandei assim sem nenhum compromisso, como mando sempre mando. E ela quis.
Você deu início a uma residência universitária em Coimbra… de alguma forma a sua vivência em Portugal reverberou na criação de “Margem”?
A primeira vez que fui dei master classes dentro de um projeto de residência. Agora dou aulas há 2 anos, indo e vindo, e retorno no próximo ano de forma fixa. Como dou um curso centrado em como escrever canções, isso tem mexido com a minha forma de compor. Tenho pensado mais, lido mais, estudado mais, e isso deve aparecer em uma próxima safra. Mas o disco, acho, não foi tão influenciado porque ele já existe enquanto conceito antes dessas idas se iniciarem. O “Margem” já era o “Margem” quando comecei a ir pra Coimbra.
Sei que você é muito fã da Madonna, assim como eu. Sabemos que ela é residente portuguesa, como você. Lembro da regravação de “Music” que você fez. Tá ansiosa pro novo álbum dela? A Madonna tem um significado marcante pra sua vida ou pra sua carreira?
Sim! Estou ansiosa (risos). Eu acho a Madonna uma mulher fantástica, dessas que abriram muitos caminhos pras próximas gerações, para meninas que produzem música no laptop, que tocam percussão e são produtoras de álbuns criados por homens – coisas que não se fazia antigamente. Ela, assim como a Marisa Monte e tantas outras mulheres que são poderosas, tem além do próprio trabalho artístico a importância de abrir caminho pra mais gente.
Também foi em Portugal que surgiu “A Mulher do Pau Brasil”, seu espetáculo mais recente… como isso aconteceu?
Surgiu justamente pelo fato de eu estar em Coimbra, vivendo a oportunidade de mergulhar em um tipo de tradição histórica em que pessoas foram para lá estudar e passaram a olhar o Brasil daquele ponto de vista. Falamos de uma universidade que tem uma cumplicidade muito grande com o desejo do nosso país de ser “O Brasil” e não uma colônia portuguesa. Em Coimbra, você anda pelos mesmos corredores em que andou José Bonifácio, Gonçalves Dias, D. Dinis. Olhando pra essas coisas, pra essa reafirmação das ideias de identidade artística e nacional, que nos leva a parar de fazer cópias mal feitas da poesia européia, ideias de Oswald e de Mario de Andrade… Tudo isso faz com que Coimbra me ajude a confirmar uma consciência de que estou vivendo uma tradição acadêmica que muita gente viveu. É um tipo de coisa que nos ajudou muito a pensar o Brasil.
Ao longo da sua carreira você se inspirou na poesia Pau Brasil, no Movimento Modernista e em Oswald de Andrade. Estar longe, fazer essa residência em Coimbra, produzir um show baseado nas artes brasileiras… reforçou seus laços com o país?
Ah, sempre! Sempre. E repensar tudo isso do ponto de vista de Portugal reafirmou pra mim algumas ideias. Os professores, os reitores e as pessoas que frequentam a Universidade de Coimbra dizem que os alunos brasileiros são a alegria daquele espaço. Oswald de Andrade diz que a alegria é a prova dos nove, então é algo que confirma essa tese (risos).
Em fevereiro deste ano você reuniu um time de jovens talentos da MPB para o disco “Nada Ficou no Lugar”. Como foi ver as suas canções sendo interpretadas por outras vozes, por artistas tão diferentes entre si?
Eu adorei, achei um barato! Me perguntaram se poderiam fazer o disco e a minha única condição foi ‘desde que eu não tiver que fazer nada, porque já fiz as canções’ (risos). Gostei muito, especialmente a forma com que tomaram as canções para si.
Temos vivido um período bastante conturbado no Brasil, principalmente com a cultura e a educação. Você consegue ver uma saída?
Eu sempre fui otimista. Não serviu pra nada, mas continuo sendo.
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“Margem”, o novo disco de Adriana Calcanhotto, já está disponível em todos os tocadores digitais.
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